Filologando

A Filologia e o labor do filólogo

Phablo Roberto Marchis Fachin

De acordo com Spina (1994, p. 67), “do amor à poesia que nasceu a Filologia”. A sua  história remonta à antiguidade clássica, aos eruditos da biblioteca de Alexandria, da necessidade  de se operar com diferentes versões de uma mesma obra, de se conhecer a língua dos textos e a sua história, de provê-los de sumários e glossários, de tábuas explicativas, da busca por reconstituir um texto à sua genuinidade, ou ao mais próximo possível desse intento. 

O labor dos primeiros filólogos estava voltado para a restauração, intelecção e explicação dos textos, complementado com contextualizações biográficas, gramaticais e juízos de valor de natureza estética. Ao longo  do tempo, do seu sentido etimológico, relacionado ao amor à palavra, “amor da ciência; ao culto da erudição ou da sabedoria em geral; em especial, o amor e o culto das ciências do espírito” (Vasconcelos, 1911, p. 129), tomando o sentido do termo “palavra” como expressão de  pensamento, por meio do qual pesquisadores de diferentes áreas se relacionavam, entre eles, tanto aqueles que se voltavam para os estudos de práticas filosóficas, literárias quanto linguísticas, a Filologia foi se desenvolvendo e ganhando novas cores, potencializando-se de acordo com as épocas e os lugares em que se praticou o labor filológico. 

Na sua história, independentemente de ser tratada como o estudo da “nossa língua em  toda a sua amplitude” (VASCONCELOS, 1911, p. 9) ou do “que é necessário para conhecer a  correta interpretação de um texto literário" (HERRERO, 1965, p.17), o texto (manuscrito,  datiloscrito, impresso e, atualmente, também digital) nunca deixou de ser objeto fundamental  da investigação filológica. 

Do ponto de vista teórico-metodológico, a perspectiva do estudo filológico tem variado conforme uma série de fatores, muitas vezes complementares: 1) a época em que o texto foi produzido, se se trata de um texto clássico (grego ou latino), um texto medieval ou moderno; 2) a sua natureza,  literário ou não-literário, público ou particular; 3) o seu contexto de produção, implicações  políticas e históricas relacionadas à sua composição, se faz parte de uma prática de escrita  consagrada e como está relacionado a ela, se a espécie documental corresponde a uma estrutura  diplomática, ou mais amplamente, se a uma organicidade arquivística; 4) a sua forma de circulação e transmissão, se se trata de um original autógrafo (escrito pelo próprio autor), idiógrafo (escrito por um terceiro, mas sob supervisão do autor),  apógrafo (escrito por um copista), um impresso, ou impressos, cujo original era manuscrito,  localizado ou não; 5) a sua materialidade, características do suporte, da tinta e de outros elementos relacionados à manuscritura, no caso de um manuscrito, ao modo editorial, no caso de impresso, ou às diferentes camadas que pode assumir, no caso de um texto digital; 6) o estado de língua documentado, podendo revelar diferentes instâncias de escrita, a do autor, a do copista  ou a do editor; 7) questões arquivistas e de guarda documental, considerando o itinerário dos  textos ao longo de sua história; 8) o texto como fonte documental, como composição de corpora de estudos de diferentes naturezas, mas cujo foco não é o próprio texto. 

Ainda poderia haver outros aspectos a depender do texto que se tem em mãos e das suas particularidades. Isso implica dizer que, embora tenhamos uma prática filológica sistematizada - principalmente a partir do século XIX, por meio de importantes trabalhos nessa área, como os de Karl Lachmann e Joseph Bédier, depois no século XX, por meio de estudos filológicos de obras muito significativas, tanto para estudos em Literatura quanto em História da Língua Portuguesa, como são os casos das edições de textos da lírica profana trovadoresca, das crônicas e forais medievais, ou de textos modernos, especialmente no âmbito da Crítica Textual, baseado em obras, por exemplo, de Fernando Pessoa, Eça de Queirós, Machado de Assis, Mário de  Andrade, e de tantos autores anônimos que contribuíram para a produção de escritos de  diferentes naturezas ao longo do tempo -- no contexto da Filologia, são predominantemente o texto e as diferentes implicações relacionadas à sua composição e à história que direcionam o  trabalho do filólogo e determinam as etapas da sua atividade.  

Sem perder de vista que o trabalho do filólogo coloca o texto em circulação novamente, às vezes de forma inédita do ponto de vista da sua transmissão ou do seu uso como fonte documental, outras vezes, não com um caráter inédito, mas em contraste com outras edições existentes, já em circulação, mas sem um estatuto conhecido, o texto resultado de um trabalho filológico vem acompanhado de informações substanciadas a respeito de sua história, de sua escrita, de sua materialidade e do estado de língua utilizado na sua produção.

Para se entender como o trabalho do filólogo se opera na prática, e quais seriam as etapas do seu trabalho, é preciso considerar as particularidades do seu objeto de estudo, tanto no âmbito da Literatura e da Crítica Textual quanto no da História e da Linguística Histórica. Atualmente, também em interface com outras áreas do conhecimento, como a Arquivística, a Conservação, o Restauro, a Física, a Química, as Humanidades Digitais, entre outras. 

Na realidade, todo texto tem uma história, de produção, circulação e, às vezes, também de  transmissão. Nem sempre a versão que chega às mãos do leitor reflete o trabalho do seu autor ou, então, o seu processo de criação e as diferentes etapas de elaboração por meio do qual o  texto passou até ser lido, analisado e interpretado. No caso de escritores consagrados, como Machado de Assis, por exemplo, o labor filológico tem ajudado a compreender não só a sua produção literária publicada, portanto que circulou em vida e postumamente, como também os bastidores da criação literária machadiana, ampliando o aparato do crítico para a compreensão da sua esfera artística, seja por meio do acesso a cartas do autor, produções em folhetins, publicações em livro e também materiais que não chegaram a circular, como aconteceu com  uma comédia intitulada As forças caudinas, escrita por ele nos anos iniciais de sua carreira  como escritor, que se descobriu, no final do século passado, ter sido adaptada para folhetim e  ainda para um conto, intitulado Linha reta e linha curva, publicado no livro Contos  Fluminenses. Em contextos relacionados à História da Língua Portuguesa, é por meio da edição fidedigna de documentos manuscritos e da sua contextualização histórica que o labor filológico cria condições para se avançar na descrição linguística, por meio de textos que refletem o  emprego da língua de acordo com o seu contexto autoral de produção. São exemplos do diversos trabahos de mestrado e doutorado defendidos na área, que têm contribuído significativamente para os estudos sobre a história da língua portuguesa e das práticas de escrita ao longo do tempo.

Tendo em vista o contato com os textos e a sua perspectiva de trabalho, de acordo com  Vasconcelos (1911, p. 126), “o filólogo deve sempre historiar e, comparando, retroceder até  chegar às origens, aos elementos primários”. Nesse sentido, é preciso “ir às fontes” e procurar torná-las inteligíveis em toda a sua extensão, como defendia Spina (1994). Para isso, há uma  série de operações do trabalho filológico que podem ser organizadas de acordo com o tipo de  fonte utilizada, monotestemunhal (documento único) ou politestemunhal (várias versões do  mesmo texto). No primeiro caso, apenas excetuando a ausência de cotejo entre versões.  

Considerando as implicações que a história filológica apresenta, pode-se operar com o seu conceito da seguinte forma. Filologia como ciência que estuda o texto, em busca de compreender a sua trajetória e identificar o seu estatuto como patrimônio material, histórico, linguístico e/ou literário. Por estatuto, entende-se a situação/posição ou a circunstância do texto em relação a seu contexto de produção, história, materialidade, autoria, autenticidade, genuinidade etc. O texto, dessa forma, considerado de diferentes pontos de vista: 1. natureza: gênero, conteúdo, língua, autoria e recepção; 2. trajetória: criação, circulação, guarda, transmissão, conservação e restauro, uso como fonte documental; 3. materialidade: suporte, materiais de escrita, escrita; 4. condição: artefato, documento, mercadoria, fonte documental, etc.

Em conformidade com seu alcance em relação ao trabalho com os textos, podem-se apresentar, dentre outras, as seguintes perspectivas para o labor do filólogo:

1) pesquisa e coleta todos os registros por meio do qual uma obra se materializou, ou  seja, seus testemunhos. A totalidade de materiais identificados compõe a sua  tradição. Direta: todo manuscrito, datiloscrito, impresso ou digital da própria obra;  indireta: outros textos que podem contribuir para o entendimento da obra e  esclarecer as alterações sofridas ao longo da sua história; 

2) descrição dos testemunhos localizados e contextualizá-los, tendo em visto seus  aspectos históricos, materiais e linguísticos, além de outros fatores já apresentados  neste trabalho; 

3) transcrição de forma conservadora, conforme o caso, o (s) testemunho (s) (de acordo  com o tipo de fonte em mãos e procurar relacioná-los, no intuito de verificar a  filiação entre eles e como se operou a sua transmissão. Quando testemunho  monotestemunhal, a comparação pode ser feita também com outras obras do mesmo  gênero textual; 

4) de acordo com o objetivo do trabalho e o seu público-leitor, elaboração de uma edição da  obra com vistas à publicação, que pode ser uma Edição Crítica, no caso de se  pretender alcançar o estabelecimento crítico do texto, acompanhada por um aparato  crítico de variantes para que o leitor tenha acesso ao repertório de transformações que o texto sofreu. No caso de se ter acesso a materiais que testemunham o processo  criativo do autor, rascunhos, primeiros esboços da obra, uma Edição Crítico Genética. Em relação a fontes monotestemunhais, uma Edição Diplomática, por meio da qual se procura conservar todos os seus aspectos gráficos, sem intervenção do editor, ou, então, uma Edição Semidiplomática, por meio do qual se procura alcançar um público mais amplo, desenvolvendo abreviaturas, inferindo certos pontos lacunosos e fazendo seus preenchimentos, sempre com indicação de como isso se operou. Quando se objetiva ampliar um público mais amplo possível, pode-se também realizar uma Edição Modernizada, atualizando o estado de língua para o contexto atual da publicação.

Independente da perspectiva adotada, o filólogo apresenta o seu percurso analítico, os procedimentos e critérios utilizados, para que seu trabalho possa ser acompanhado e suas escolhas editoriais compreendidas ao longo do processo de leitura e transcrição do texto. Além disso, deve-se considerar também a  necessidade de adaptar e/ou complementar o aqui se apresentada, de acordo com a obra estudada, a sua história de produção, circulação e transmissão.  

Dessa forma, o resultado do labor do filólogo traz uma série de contribuições para  diferentes áreas que trabalham, direta ou indiretamente, com textos. Desde a recuperação e a  preservação de um patrimônio cultural escrito de uma dada cultura, por meio do seu registro  em novos e modernos suportes até a potencialização das análises realizadas a partir de textos  que efetivamente reproduzem a forma como foi escrito originalmente ou mais próximo de seu  contexto de produção.


 

Referências Bibliográficas

CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à Crítica Textual. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

HERRERO, Víctor José. Introducción al estudio de la filología latina. Madrid: Gredos,  1965.

SPINA, Segismundo. Introdução à edótica: crítica textual. São Paulo, Cultrix, Ed. da Universidade de São Paulo, 1994.

VASCONCELOS, José Leite de. Lições de Filologia. Lisboa: Imprensa Portuguesa, 1911.